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O impacto da Lei de Abuso de Autoridade frente aos credores

Por Joana Rech

A Lei 13.869/2019, que define os crimes de abuso de autoridade praticados por agentes públicos, entrou em vigor no dia 03 de janeiro de 2020, sendo à época de sua proposição avaliada como uma suposta reação política aos abusos cometidos no curso da Operação Lava Jato.

A proposta inicial visava a regular as condutas dos agentes públicos, a fim de que não excedessem suas responsabilidades. No entanto, antes mesmo de sua vigência, ainda no período de sua vacatio legis, foram proferidas decisões emblemáticas em decorrência do artigo 36¹ da referida lei, dando conta de que sua interpretação foi distorcida, e ao que indica contrariando àquilo que fora almejado pelo legislador.

Assim, vislumbrando a possibilidade de incorrer na conduta típica do artigo 36 da Lei 13.869/2019, diversos magistrados passaram a indeferir o pedido de indisponibilidade de ativos financeiros por meio do sistema BacenJud, em detrimento do direito do credor de satisfazer seu crédito, ou seja, a recuperação de crédito que já era bastante dificultosa no atual sistema jurídico, em virtude do princípio da menor onerosidade ao devedor, criou outro impasse ao credor, endossando a conduta desleal do devedor, e por consequência, invalidando o princípio da relevância do direito do credor.

Para os julgadores, a lei não esclarece qual o alcance das expressões “exacerbadamente” e “excessividade da medida”, da mesma forma em que não refere o prazo para que fique configurada a omissão do julgador, tratando-se, portanto, de um tipo penal aberto, que comporta interpretações variadas.

Argumentam ainda que o sistema BacenJud bloqueia o valor devido em todas as contas bancárias do devedor, sendo que o estorno só poderá ocorrer após 48 horas úteis da determinação do bloqueio, de modo que por fatores alheios à sua vontade, o Magistrado poderá provocar a indisponibilidade de valores em excesso, ou ainda, tornar morosa eventual liberação, o que supostamente acarretaria no delito penal tipificado no artigo 36.

Entretanto, tal crítica mais parece uma inconformidade dos julgadores em relação ao advento da Lei, que resultou na fiscalização de seus atos jurisdicionais, tendo em vista que a possibilidade de aplicação da referida norma em decorrência da conduta tipificada no artigo 36 é quase nula. Explica-se.

O §1º do artigo 1º² da supracitada legislação é claro no sentido de que o tipo penal em questão não prevê a modalidade culposa do agente, ou seja, para incorrer em um delito penal haveria a necessidade de uma intenção (dolo) do magistrado de prejudicar a parte ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal, o que não se espera, diante da conduta imparcial exigida ao exercício da função jurisdicional.

Ademais, eventual abuso de autoridade só será passível de análise na hipótese em que inobservada à parte final do dispositivo que prevê: “[…] ante a demonstração, pela parte, da excessividade da medida, deixar de corrigi-la […]”, ou seja, para que o Magistrado incida na tipicidade da conduta descrita como crime e se sujeite às penas decorrentes, imprescindível sejam ultrapassados os requisitos impostos pela legislação, qual seja, o dolo e a omissão na adequação da conduta.

Da mesma forma, vê-se que o §1º do artigo 854 do CPC³ instrui que o excesso de bloqueio deverá ser corrigido e o próprio sistema do Banco Central permite o imediato desbloqueio na hipótese de verificado o excesso após o resultado da busca.

Não obstante a série de decisões singulares nesse sentido, há uma corrente majoritária nos Tribunais Pátrios posicionando-se para a sua reforma, argumentando que a negativa de prestação jurisdicional não pode haver e ser chancelada, tampouco violação à razoável duração do processo a pretexto de não se incorrer em tal ilícito. Além de se tratar de um crime de conduta mista com especial finalidade de agir, não prosperando o receio de que a determinação de indisponibilidade de bens possa, em abstrato, ser enquadrada no artigo 36 da Lei 13.869/2019.

A respeito do tema, convém citar o entendimento esposado pela Desembargadora Marilene Bonzanini do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul⁴:

Para além das condutas comissiva (decretar) e omissiva (deixar de corrigir), é necessário destacar que o agente público apenas será considerado como incurso no tipo penal caso fique comprovada, ainda, a especial finalidade de “prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal”

Assim, o que se observa após o advento da referida lei, é que tal avaliação se mostra precipitada e excessiva, isso porque afronta à regra de vigência no Código de Processo Civil, qual seja, o artigo 854, que regula a penhora de ativos financeiros, o que nesse aspecto refletiria em um retrocesso à efetividade dos processos executivos. Por outro lado, a lei se mostra eficaz como meio de inibir abusos por parte dos Magistrados que não cooperam com o devido processo legal, não podendo, portanto, servir como um empecilho para a sua aplicação correta e eficaz.

¹Art. 36. Decretar, em processo judicial, a indisponibilidade de ativos financeiros em quantia que extrapole exacerbadamente o valor estimado para a satisfação da dívida da parte e, ante a demonstração, pela parte, da excessividade da medida, deixar de corrigi-la: Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

²Art. 1º Esta Lei define os crimes de abuso de autoridade, cometidos por agente público, servidor ou não, que, no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las, abuse do poder que lhe tenha sido atribuído.
§ 1º As condutas descritas nesta Lei constituem crime de abuso de autoridade quando praticadas pelo agente com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal.
§ 2º A divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura abuso de autoridade.

³Art. 854. Para possibilitar a penhora de dinheiro em depósito ou em aplicação financeira, o juiz, a requerimento do exequente, sem dar ciência prévia do ato ao executado, determinará às instituições financeiras, por meio de sistema eletrônico gerido pela autoridade supervisora do sistema financeiro nacional, que torne indisponíveis ativos financeiros existentes em nome do executado, limitando-se a indisponibilidade ao valor indicado na execução.
§ 1º No prazo de 24 (vinte e quatro) horas a contar da resposta, de ofício, o juiz determinará o cancelamento de eventual indisponibilidade excessiva, o que deverá ser cumprido pela instituição financeira em igual prazo.

⁴Agravo de Instrumento, No 70083939132, Vigésima Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Marilene Bonzanini, Julgado em: 26-02-2020.
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