01.04

Imprensa

Direito Tributário

Sessão do Carf acaba em troca de ameaças entre conselheiros

Por Beatriz Olivon

A gravação de um julgamento virtual do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) começou a circular ontem entre conselheiros e advogados tributaristas. O motivo não é a matéria debatida. Mas o tom de ameaça do presidente da turma de denunciar representantes dos contribuintes que não seguiram uma súmula do órgão. Previsto no regulamento interno, o fato pode levar à perda do mandato.

A discussão ocorreu na 1ª Turma da 4ª Câmara da 3ª Seção, que analisava aplicação de multa por falta de prestação de informações aduaneiras. Para a empresa, a multa já não poderia ser cobrada por causa da prescrição intercorrente. Passaram-se seis anos sem movimentação no processo, de acordo com o contribuinte, e o limite seria de cinco.

A Súmula nº 11 do Carf, porém, determina que não se aplica prescrição intercorrente em processo administrativo fiscal. Foi o que levou à discussão. Três representantes dos contribuintes entenderam que não deveria ser seguida. Defenderam que o caso era diferente dos usados para a elaboração da súmula — referem-se a julgamentos tributários e não a questões aduaneiras. Mas a distinção (distinguishing) não foi aceita pelo presidente.

O vídeo do julgamento, realizado em março, foi disponibilizado ontem na página do Carf no YouTube. Já no voto do relator, conselheiro Ronaldo Souza Dias, representante da Fazenda, havia a indicação de perda de mandato para quem não seguisse a súmula. A conselheira Fernanda Kotzias foi a primeira a reconhecer a prescrição intercorrente nesse caso.

O presidente da turma, conselheiro Lázaro Antonio Souza, disse estar diante de “uma questão delicada”, um problema regimental. Informou que consultou a administração do Carf e foi orientado a registrar em ata, de forma detalhada, votos contrários à súmula e apresentar representação à presidência do tribunal administrativo.

“Eu não sabia qual era o procedimento. Não tirei isso da cartola, apenas consultei qual era em situações como essa e me passaram essa orientação”, afirmou. Ele acrescentou que estava apenas orientando os conselheiros e que poderiam, na defesa da representação, explicar os motivos de não seguirem a súmula.

A conselheira Fernanda Kotzias imediatamente reagiu. “Estou me sentindo coagida a retirar um voto que fiquei um mês pesquisando e avaliando”, disse. “Se o senhor consignar em ata que descumpri súmula, está dizendo que eu não tenho direito a fazer um distinguishing [distinção].” Para ela, no caso, não haveria violação de súmula.

O presidente respondeu que não estava fazendo “uma ameaça”. E acrescentou: “A distinção entre alerta e ameaça é muito sutil. Eu não demito ninguém e não julgo nada, vou apenas fazer a representação. Se houve apenas uma distinção não há motivo para se preocupar. A decisão será do Carf.”

Também representante dos contribuintes, o conselheiro Leonardo Branco afirmou que, por mais que seja dito que ao fim do processo os conselheiros que votarem dessa forma estarão livres, a representação será apresentada. “O achaque está feito. O crime contra a honra estará feito”, disse. “A decisão é sua, é uma interpretação. Mas fico muito triste, estou no Carf há seis anos e nunca vi comportamento como esse”, acrescentou ele, que considerou a postura do presidente como “abuso de poder”.

O presidente disse que também nunca tinha visto uma decisão frontalmente contrária a uma súmula e também entende como ameaça as alegações de abuso de poder ou perda de imparcialidade. “Abuso de poder na administração pública pode até ser caso de demissão”, disse. Na sequência suspendeu o julgamento, que deverá ser retomado em abril processo nº 10280.722093/2011-42).

Segundo o advogado Carlos Augusto Daniel Neto, sócio do escritório Daniel e Diniz Advocacia Tributária e ex-conselheiro do Carf, a súmula não é um texto de lei que deve ter aplicação direta. É necessário observar qual o contexto dos precedentes que levaram ao entendimento. “Várias vezes eu deixei de aplicar súmula por motivo de ‘distinguishing’ e nunca tive problema. Isso é comum no Carf”, afirma ele, que atuou por quatro anos (2015 a 2019) no órgão.

A Associação dos Conselheiros Representantes dos Contribuintes no Carf (Aconcarf) publicou uma nota de repúdio em que manifesta solidariedade aos três conselheiros que teriam sido ameaçados com representação. O Colégio de Presidentes da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) se manifestou da mesma forma.

Para a Aconcarf, a atitude do presidente da turma ultrapassou o alerta ou advertência. A ameaça, por si só, de acordo com o órgão, reflete uma interferência indevida e contrária ao livre convencimento dos conselheiros. “Os conselheiros se sentiram coagidos”, diz o presidente da Aconcarf, Laércio Cruz Uliana Junior. Ele acrescenta que nunca viu perda de mandato por esse motivo.

Presidente do Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (Cesa), Gustavo Brigagão considera lamentável o que ocorreu no julgamento. “Claro que cabe representação ao descumprimento de súmula do Carf, mas não era isso que estava sendo feito. O presidente demonstrou profundo desconhecimento da teoria dos precedentes”, disse.

Procurado pelo Valor, o Carf não deu retornou até o fechamento da edição.

Fonte: Valor Econômico, 31/03/2021.
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