28.01

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Direito do Trabalho

A nova Lei da Liberdade Econômica e a desconsideração da personalidade jurídica: breves reflexões

Patrícia Benedetto Todeschini
Rafael Montano Rossi
 
A Lei nº 13.874/2019 modificou diversas outras leis brasileiras com o intuito de reduzir a intervenção estatal na economia e incentivar o empreendedorismo.
 
No Código Civil de 2002, foram promovidas mudanças no que diz respeito à desconsideração da personalidade jurídica, entre outras medidas. Entretanto, antes de adentrar na alteração mencionada, necessário definir o que é o instituto da personalidade das pessoas jurídicas.
 
Washington de Barros Monteiro define a pessoa dotada de personalidade jurídica como aquela que “é sujeito de direito ou sujeito de relação jurídica”[1]. Ou seja, a personalidade jurídica é a aptidão genérica para titularizar direitos e contrair obrigações[2]. Para o Direito, pode ser considerado como pessoa tanto o ser humano individual, chamado pessoa física, como as entidades personificadas, conhecidas como pessoas jurídicas[3].
 
A capacidade jurídica é própria do ser humano. Porém, alguns objetivos não podem ser atingidos por uma única pessoa natural, sendo necessária a conjugação de esforços de dois ou mais indivíduos. A fim de incentivar essa união de forças, o Direito lhe atribui personalidade jurídica própria[4], desde que preenchidos os requisitos legais específicos para tanto.
 
A “pessoa jurídica”, isso é, aquela constituída de uma ou mais pessoas naturais em sociedade, oferece diversos benefícios e proteções aos seus constituintes. Para evitar abusos desses benefícios é que o Direito prevê a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica.
 
Anteriormente à entrada em vigor da Lei nº 13.874/2019, o Brasil adotava duas teorias: a Teoria Maior da Desconsideração[5], que prevê a desconsideração apenas caso preenchidos os necessários requisitos legais, e a Teoria Menor da Desconsideração, que autoriza a responsabilização patrimonial dos sócios em caso de mero inadimplemento das obrigações pela sociedade.
 
Entretanto, a Lei da Liberdade Econômica modificou o artigo 50 do Código Civil, dando-lhe a seguinte redação:
 
Art. 50.  Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso. (Redação dada pela Lei nº 13.874, de 2019)
§ 1º Para os fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
§ 2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por: (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
I - cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa; (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
II - transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante; e (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
III - outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
§ 3º O disposto no caput e nos §§ 1º e 2º deste artigo também se aplica à extensão das obrigações de sócios ou de administradores à pessoa jurídica. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
§ 4º A mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput deste artigo não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
§ 5º Não constitui desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica.
 
Assim, a legislação brasileira passa a prever pela primeira vez, em caráter geral, requisitos objetivos para a desconsideração da personalidade jurídica, bem como a definir conceitos que, antes, eram amplos, como o “desvio de finalidade” e a “confusão patrimonial”.
 
Essas modificações terão reflexos, inclusive, na seara trabalhista. Hoje, os juízes do trabalho aplicam a Teoria Menor da Desconsideração com fundamento no parágrafo 5º do artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor, in verbis:
 
Art. 28.
[...]
§ 5º Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.
 
Contudo, a legislação trabalhista não institui claramente esse critério, de modo que o que se verifica, na realidade, é uma grande subjetividade dos magistrados, que aplicam o critério mais adequado ao seu entendimento pessoal. Esta aplicação pode dificultar a satisfação dos créditos trabalhistas, entretanto, o mais comum é ver execuções indevidas contra sócios de pessoas jurídicas que não cometeram abuso de personalidade jurídica ou mesmo pessoas que não fazem mais parte dessas empresas, como sócios retirantes e administradores judiciais, em face da adoção indiscriminada e irrefletida da Teoria Menor.
 
Entretanto, uma vez que o parágrafo primeiro do artigo 8º da CLT define o direito comum como fonte subsidiária do direito do trabalho, tem-se que a melhor interpretação do dispositivo é que, nas falhas da legislação trabalhista em matéria de direito material, devem ser adotadas as disposições do Código Civil, e não de leis especiais como o CDC ou da legislação ambiental.
 
Assim, a conjugação do referido dispositivo da CLT e da nova redação do artigo 50 do CC atrai a conclusão de que o direito do trabalho deverá adotar a Teoria Maior da Desconsideração, aplicando-se somente quando comprovado o abuso de personalidade, nos termos previstos na lei comum.
 
Essa modificação, se adequadamente observada pelo Poder Judiciário, deverá trazer maior segurança jurídica aos agentes econômicos, uma vez que mitiga e torna mais previsíveis os riscos da atividade econômica, elemento essencial para incentivar o investimento e, por consequência, o desenvolvimento econômico tão necessário na atualidade.

[1]MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil: parte geral. 40. ed. Ver. e atual. por PINTO, Ana Cristina de Barros Monteiro França. São Paulo: Saraiva, 2005. v. 1 apud GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Introdução ao estudo do direito: teoria geral do direito. 3. ed. ver. e atual. Rio de Janeiro: Forense, São Paulo: Método. 2015. p. 49.
[2]GAGLIANO, Pablo Stolze e FILHO, Rodolfo Pamplona. Novo curso de direito civil, volume 1: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 111.
[3]VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: parte geral. 8. Ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 124.
[4]Idem, p. 221.
[5]FARACO, Marcela. A desconsideração da personalidade jurídica no direito do trabalho e sua fundamentação: análise quanto à aplicação da Desconsideração da Personalidade Jurídica no âmbito trabalhista e os fundamentos que devem ser apresentados para tanto. Disponível em: . Acesso em: 07.nov.2019.