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A revisão do Tema n° 677 do Superior Tribunal de Justiça: a alteração do entendimento sobre os efeitos da mora sobre o depósito judicial e a (in)segurança jurídica
Carlos Eduardo Barcelos Alves
Mathias Pimentel Cazarotto
Em dezembro de 2022 foi revisada pela Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ) a tese do Tema Repetitivo nº 677, impondo uma significativa alteração no entendimento jurisprudencial referente aos efeitos da mora sobre os valores depositados em juízo.
Anteriormente, o entendimento então consolidado no Tema nº 677 era de que o depósito judicial, ainda que somente para fins de garantia do juízo da execução, afastava os efeitos da mora sobre o valor depositado[1].
Com o advento da tese ora fixada pelo STJ, o depósito realizado a título de garantia de juízo não é mais suficiente para elidir os efeitos da mora[2], ou seja, ainda que realizado o depósito judicial dos valores devidos, o mero depósito não afasta a responsabilidade decorrente da mora, sendo essa purgada tão somente quando do efetivo levantamento dos valores pelo credor.
Desse modo, o posicionamento adotado pela Corte Superior estabelece uma nova perspectiva sobre a matéria, impactando diretamente as práticas e estratégias processuais relacionadas ao depósito de valores em juízo, o que pode causar prejuízo pecuniário aos devedores em processos já garantidos por depósito judicial (sob o entendimento antes vigente).
Ademais, a alteração de entendimento acarreta uma série de outros reflexos indesejáveis ao deslinde das execuções em geral, e nesse sentido, o saudoso Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, advertiu acerca das prováveis consequências negativas decorrentes da modificação da tese[3], tais como “desestimular devedor de efetuar depósito em dinheiro na fase de execução”, isso porque, “entre a opção de imobilizar o capital num depósito remunerado pelo índice da poupança (em regra), permanecendo sujeito aos encargos da mora, e a opção de permanecer na disponibilidade do capital, esta última opção seria economicamente mais vantajosa para o devedor”, consequência essa que seria contrária à desejável efetividade da execução por quantia certa.
E no que se refere à expectativa de segurança jurídica, não há como ignorar o fato de que os jurisdicionados analisam tanto as possibilidades de êxito, quanto os riscos de impacto financeiro que podem advir do resultado negativo da demanda, tomando como base os precedentes existentes sobre cada matéria.
Certamente, ao decidirem a melhor estratégia processual muitos jurisdicionados, baseados na redação antes vigente do Tema nº 677, realizaram o depósito da garantia do juízo com o intuito deliberado de elisão da mora.
Nesse sentido, cabe destacar que a doutrina adverte acerca dos reflexos da expectativa de estabilidade da jurisprudência não somente sobre a estratégia processual, mas também sobre os negócios jurídicos em geral. Nas palavras de Francisco Rosito (2011, p. 294) “[...] a regularidade jurisprudencial, especialmente provocada por decisões dos tribunais superiores, confere presunção de acerto, orientando a tomada de decisões para adoção de medidas e proposição de negócios jurídicos.”
Portanto, a estratégia adotada pelos jurisdicionados estava fundada na previsibilidade proporcionada por precedente da Corte Superior firmado sob o rito dos recursos repetitivos — ou seja, precedente de força vinculante —, garantindo à parte a necessária segurança jurídica no que se refere ao resultado possível do processo.
Ocorre que a adoção do novo entendimento pelo STJ entendeu como desnecessária a modulação de efeitos da nova tese, de modo que foi abalada a confiabilidade, estabilidade e previsibilidade da jurisprudência da Corte Superior, haja vista que superado o precedente vinculante que antes serviu de parâmetro para adoção das várias estratégias processuais em ações executivas em tramite em todo território nacional.
Todavia, ainda que ausente a modulação de efeitos da decisão que revisou o posicionamento, é impositiva a observância do princípio da segurança jurídica, o que autoriza seja adotado o precedente firmado anteriormente.
Isso porque é aplicável a superação prospectiva dos precedentes (prospective overruling), que é a técnica que visa conciliar a superação do posicionamento de precedentes com a segurança jurídica decorrente do mesmo precedente, haja vista que a nova tese se equipara à norma jurídica, cujos efeitos, via de regra, não são retroativos.
E nesse mesmo sentido, a doutrina preleciona, conforme bem observado por Rosito (2011, p. 296-297) que:
[...] é altamente recomendável que os efeitos da modificação e revogação do precedente operem efeitos prospectivos, quando restarem presentes certos pressupostos. Isso porque o precedente vinculativo equipara-se à norma, sendo imperioso respeitar o princípio da irretroatividade da lei.
Desse modo, a adoção da superação prospectiva dos precedentes impede que sejam geradas graves consequências para os jurisdicionados que, confiando no precedente firmado anteriormente pelo Corte Superior no Tema nº 677, realizaram o depósito da garantia do juízo com a finalidade de elisão dos efeitos da mora, e não podem ser surpreendidos por efeitos retroativos de entendimento jurisprudencial superveniente.
Por fim, em uma leitura teleológica da legislação aplicável, pode-se entender como cabível a superação prospectiva dos precedentes com fundamento no art. 20, caput, e no art. 23 do Decreto-Lei nº 4.657/42 - Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro – LINDB (BRASIL, 1942, documento eletrônico), que preveem que “[...] não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.”, bem como determinam que a decisão “[...] judicial que estabelecer interpretação ou orientação nova sobre norma de conteúdo indeterminado, impondo novo dever ou novo condicionamento de direito, deverá prever regime de transição quando indispensável para que o novo dever ou condicionamento de direito seja cumprido de modo proporcional, equânime e eficiente e sem prejuízo aos interesses gerais.”
É dizer: para a adoção de nova tese do Tema nº 677 é impositivo que se considerem as consequências práticas da decisão, e impositivo que seja previsto regime de transição visando o cumprimento do novo dever de modo “proporcional, equânime e eficiente e sem prejuízo aos interesses gerais”, o que autoriza, a nosso juízo, a aplicação da superação prospectiva dos precedentes, de modo que pode-se concluir, que ainda que a Corte Superior tenha revisado a tese em questão (cuja revisão, note-se, ainda não é definitiva, dada a pendência de recursos interpostos face ao paradigma), é imperioso que se observe o entendimento vigente no precedente anterior, em respeito ao princípio da segurança jurídica.
[1] O entendimento anterior constante do Tema nº 677 foi firmado pela Segunda Seção do STJ no julgamento do REsp 1.348.640/SP, sob a tese de que “Na fase de execução, o depósito judicial do montante (integral ou parcial) da condenação extingue a obrigação do devedor, nos limites da quantia depositada”.
[2] A nova tese do Tema nº 677, fixada quando do julgamento do REsp 1.820.963/SP, adotou a seguinte redação: “Na execução, o depósito efetuado a título de garantia do juízo ou decorrente da penhora de ativos financeiros não isenta o devedor do pagamento dos consectários de sua mora, conforme previstos no título executivo, devendo-se, quando da efetiva entrega do dinheiro ao credor, deduzir do montante final devido o saldo da conta judicial”.
[3] Vide o voto-vista do Min. Paulo de Tarso Sanseverino, no acórdão proferido no REsp 1.820.963/SP, disponibilizado no Diário de Justiça Eletrônico em 15/12/2022, conforme as e-STJ fls. 1.216-1.218.
Referências
BRASIL. Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942. Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro. Brasília, DF: Presidência da República, 1942. Disponível em: < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del4657.htm>, acesso em 15 jul. 2024.
ROSITO, Francisco. Teoria dos precedentes judiciais: racionalidade da tutela jurisdicional. 2011. 438 f. Tese (Doutorado em Direito) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011.
Mathias Pimentel Cazarotto
Em dezembro de 2022 foi revisada pela Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ) a tese do Tema Repetitivo nº 677, impondo uma significativa alteração no entendimento jurisprudencial referente aos efeitos da mora sobre os valores depositados em juízo.
Anteriormente, o entendimento então consolidado no Tema nº 677 era de que o depósito judicial, ainda que somente para fins de garantia do juízo da execução, afastava os efeitos da mora sobre o valor depositado[1].
Com o advento da tese ora fixada pelo STJ, o depósito realizado a título de garantia de juízo não é mais suficiente para elidir os efeitos da mora[2], ou seja, ainda que realizado o depósito judicial dos valores devidos, o mero depósito não afasta a responsabilidade decorrente da mora, sendo essa purgada tão somente quando do efetivo levantamento dos valores pelo credor.
Desse modo, o posicionamento adotado pela Corte Superior estabelece uma nova perspectiva sobre a matéria, impactando diretamente as práticas e estratégias processuais relacionadas ao depósito de valores em juízo, o que pode causar prejuízo pecuniário aos devedores em processos já garantidos por depósito judicial (sob o entendimento antes vigente).
Ademais, a alteração de entendimento acarreta uma série de outros reflexos indesejáveis ao deslinde das execuções em geral, e nesse sentido, o saudoso Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, advertiu acerca das prováveis consequências negativas decorrentes da modificação da tese[3], tais como “desestimular devedor de efetuar depósito em dinheiro na fase de execução”, isso porque, “entre a opção de imobilizar o capital num depósito remunerado pelo índice da poupança (em regra), permanecendo sujeito aos encargos da mora, e a opção de permanecer na disponibilidade do capital, esta última opção seria economicamente mais vantajosa para o devedor”, consequência essa que seria contrária à desejável efetividade da execução por quantia certa.
E no que se refere à expectativa de segurança jurídica, não há como ignorar o fato de que os jurisdicionados analisam tanto as possibilidades de êxito, quanto os riscos de impacto financeiro que podem advir do resultado negativo da demanda, tomando como base os precedentes existentes sobre cada matéria.
Certamente, ao decidirem a melhor estratégia processual muitos jurisdicionados, baseados na redação antes vigente do Tema nº 677, realizaram o depósito da garantia do juízo com o intuito deliberado de elisão da mora.
Nesse sentido, cabe destacar que a doutrina adverte acerca dos reflexos da expectativa de estabilidade da jurisprudência não somente sobre a estratégia processual, mas também sobre os negócios jurídicos em geral. Nas palavras de Francisco Rosito (2011, p. 294) “[...] a regularidade jurisprudencial, especialmente provocada por decisões dos tribunais superiores, confere presunção de acerto, orientando a tomada de decisões para adoção de medidas e proposição de negócios jurídicos.”
Portanto, a estratégia adotada pelos jurisdicionados estava fundada na previsibilidade proporcionada por precedente da Corte Superior firmado sob o rito dos recursos repetitivos — ou seja, precedente de força vinculante —, garantindo à parte a necessária segurança jurídica no que se refere ao resultado possível do processo.
Ocorre que a adoção do novo entendimento pelo STJ entendeu como desnecessária a modulação de efeitos da nova tese, de modo que foi abalada a confiabilidade, estabilidade e previsibilidade da jurisprudência da Corte Superior, haja vista que superado o precedente vinculante que antes serviu de parâmetro para adoção das várias estratégias processuais em ações executivas em tramite em todo território nacional.
Todavia, ainda que ausente a modulação de efeitos da decisão que revisou o posicionamento, é impositiva a observância do princípio da segurança jurídica, o que autoriza seja adotado o precedente firmado anteriormente.
Isso porque é aplicável a superação prospectiva dos precedentes (prospective overruling), que é a técnica que visa conciliar a superação do posicionamento de precedentes com a segurança jurídica decorrente do mesmo precedente, haja vista que a nova tese se equipara à norma jurídica, cujos efeitos, via de regra, não são retroativos.
E nesse mesmo sentido, a doutrina preleciona, conforme bem observado por Rosito (2011, p. 296-297) que:
[...] é altamente recomendável que os efeitos da modificação e revogação do precedente operem efeitos prospectivos, quando restarem presentes certos pressupostos. Isso porque o precedente vinculativo equipara-se à norma, sendo imperioso respeitar o princípio da irretroatividade da lei.
Desse modo, a adoção da superação prospectiva dos precedentes impede que sejam geradas graves consequências para os jurisdicionados que, confiando no precedente firmado anteriormente pelo Corte Superior no Tema nº 677, realizaram o depósito da garantia do juízo com a finalidade de elisão dos efeitos da mora, e não podem ser surpreendidos por efeitos retroativos de entendimento jurisprudencial superveniente.
Por fim, em uma leitura teleológica da legislação aplicável, pode-se entender como cabível a superação prospectiva dos precedentes com fundamento no art. 20, caput, e no art. 23 do Decreto-Lei nº 4.657/42 - Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro – LINDB (BRASIL, 1942, documento eletrônico), que preveem que “[...] não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.”, bem como determinam que a decisão “[...] judicial que estabelecer interpretação ou orientação nova sobre norma de conteúdo indeterminado, impondo novo dever ou novo condicionamento de direito, deverá prever regime de transição quando indispensável para que o novo dever ou condicionamento de direito seja cumprido de modo proporcional, equânime e eficiente e sem prejuízo aos interesses gerais.”
É dizer: para a adoção de nova tese do Tema nº 677 é impositivo que se considerem as consequências práticas da decisão, e impositivo que seja previsto regime de transição visando o cumprimento do novo dever de modo “proporcional, equânime e eficiente e sem prejuízo aos interesses gerais”, o que autoriza, a nosso juízo, a aplicação da superação prospectiva dos precedentes, de modo que pode-se concluir, que ainda que a Corte Superior tenha revisado a tese em questão (cuja revisão, note-se, ainda não é definitiva, dada a pendência de recursos interpostos face ao paradigma), é imperioso que se observe o entendimento vigente no precedente anterior, em respeito ao princípio da segurança jurídica.
[1] O entendimento anterior constante do Tema nº 677 foi firmado pela Segunda Seção do STJ no julgamento do REsp 1.348.640/SP, sob a tese de que “Na fase de execução, o depósito judicial do montante (integral ou parcial) da condenação extingue a obrigação do devedor, nos limites da quantia depositada”.
[2] A nova tese do Tema nº 677, fixada quando do julgamento do REsp 1.820.963/SP, adotou a seguinte redação: “Na execução, o depósito efetuado a título de garantia do juízo ou decorrente da penhora de ativos financeiros não isenta o devedor do pagamento dos consectários de sua mora, conforme previstos no título executivo, devendo-se, quando da efetiva entrega do dinheiro ao credor, deduzir do montante final devido o saldo da conta judicial”.
[3] Vide o voto-vista do Min. Paulo de Tarso Sanseverino, no acórdão proferido no REsp 1.820.963/SP, disponibilizado no Diário de Justiça Eletrônico em 15/12/2022, conforme as e-STJ fls. 1.216-1.218.
Referências
BRASIL. Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942. Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro. Brasília, DF: Presidência da República, 1942. Disponível em: < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del4657.htm>, acesso em 15 jul. 2024.
ROSITO, Francisco. Teoria dos precedentes judiciais: racionalidade da tutela jurisdicional. 2011. 438 f. Tese (Doutorado em Direito) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011.