11.08

Imprensa

Sem transcrição da audiência de instrução, TRT4 anula sentença

Por José Higídio

Devido à falta de transcrição da audiência de instrução, a 8ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região reconheceu a nulidade de uma sentença e determinou, de ofício, o retorno dos autos à origem, para redução a termo dos depoimentos das partes e testemunhas.

A turma ainda determinou a expedição de ofício à Corregedoria da Justiça para investigar a conduta da juíza Daniela Meister Pereira, da 1ª Vara do Trabalho de Porto Alegre, devido ao "eventual tumulto à ordem processual".

O caso

Um trabalhador havia ajuizado ação trabalhista contra uma indústria de sal. A juíza condenou a empresa a pagar adicional de insalubridade e horas extras.

Ambas as partes recorreram ao TRT-4. Mas o relator, desembargador Marcelo José Ferlin D'Ambroso, sequer analisou os recursos. Isso porque a audiência de instrução não foi registrada por escrito e, segundo o magistrado, isso impediria qualquer juízo de valor sobre o que tenha ocorrido nela. Ele constatou violações à CLT, ao Código de Processo Civil e aos princípios constitucionais do devido processo legal, contraditório e ampla defesa.

Para o relator, seria completamente inviável extrair conclusões da audiência sem a sua transcrição. "A alteração da norma processual mediante prática judicial de supressão do termo de audiência e da transcrição de depoimentos e incidentes de audiência em favor de uma simples 'gravação' constitui inequívoco tumulto ao bom andamento do processo", indicou.

Ele explicou que cada pessoa pode ouvir uma gravação e ter uma impressão, conclusão ou memória do ato, não necessariamente coincidentes "com o que deve ser relevante para o processo".

Tecnologia

De acordo com D'Ambroso, a "modernização de processo não pode ser feita mediante retorno a práticas medievais, suprimindo garantias e direitos fundamentais a pretexto de atualização de sistema ou de adaptação à pandemia". Ele exemplificou com um cenário hipotético:

"A ser desta forma, em futuro distópico bem próximo, talvez o PJe induza alguns tribunais a ressuscitarem as ordálias eletrônicas, justas em que as partes digladiarão para ver quem fala mais alto, e certamente não faltará alguma especial solução de tecnologia de informação e comunicação para determinar automaticamente quem tem razão", disse. Ordálias são provas "sobrenaturais", de modo que a culpa ou inocência é determinada por elementos naturais, dentro de um contexto religioso.

Para o desembargador, a tecnologia da informação e da comunicação deve estar a serviço do processo, e não o contrário. "Não se trata de resistir ou criar obstáculos à evolução tecnológica, mas de reconhecer que a tecnologia, em constante desenvolvimento, pode apresentar falhas", pontuou.

O PJe Mídias havia apresentado um erro de sincronização dos vídeos da audiência, o que levou o relator a reforçar: "Não reconhecer que a tecnologia é falível e, pior ainda, impedir que tais falhas sejam remediadas a tempo de evitar que prejuízos maiores aconteçam, implicaria envolver as partes litigantes em uma atmosfera claustrofóbica, absurda e distópica, sujeitando-as a uma sequência infindável de surpresas quase surreais, geradas por normas e regulamentos inacessíveis, cheios de linguagem informática, mas que, no entanto, paradoxalmente, são anunciados como se estivessem em perfeita conformidade com os parâmetros infodigitais da sociedade contemporânea".

Kafka

Na sua fundamentação, o desembargador ainda cita o livro "O Processo", do escritor tcheco Franz Kafka. A obra conta a história de um homem que é processado por um crime não especificado. Segundo ele, a rápida evolução do mundo torna o livro "mais atual do que nunca", para exigir reflexão cuidadosa sobre a proteção dos direitos e garantias fundamentais.

"A necessidade de implementação de recursos da tecnologia para assegurar a continuidade da prestação laboral em tempos de pandemia deve ser atendida sempre com cumprimento das normas constitucionais", ressalta o magistrado.

Para o relator, o caso concreto seria uma situação kafkiana: a falta de termo de audiência causaria prejuízo às partes, especialmente ao autor. Isso porque ele teve alguns pedidos julgados improcedentes por falta de prova, sendo que "a audiência de prosseguimento é a última oportunidade que as partes têm para produzir e apresentar provas".

De acordo com D'Ambroso, "privilegiar a tecnologia, desconsiderando os prejuízos advindos das falhas do sistema significaria abandonar as partes em uma desorientação kafkiana, presente apenas em situações e ambientes fictícios e ambíguos, nos quais fatos corriqueiros chegam a situações de descontrole com violação de princípios fundamentais".

Acompanho o relator

O desembargador Luiz Alberto de Vargas seguiu o entendimento de D'Ambroso e aprofundou outros pontos. Segundo o magistrado, a juíza teria registrado em ata apenas o que considerou relevante para justificar sua decisão.

A juíza afirmou que o depoimento de um colega de trabalho do autor não teria comprovado a invalidade dos registros de pontos de trabalho, já que tal testemunha informou que anotava os horários de sua própria jornada. Porém, o desembargador observou que outra testemunha disse que não registrava os pontos e apenas colocava o horário normal fixado pela empresa.

Assim, de acordo com Vargas, a juíza teria se limitado a "pinçar" trechos dos depoimentos, sem deixar claro o critério usado para excluir a prova que ela entendeu ter faltado nos autos.

"Ao invés de uma racional utilização das novas tecnologias para aproximar o juiz da realidade, o que se termina por produzir é um velamento dos fatos relevantes ao julgamento, já que os depoimentos orais são submetidos à apreciação do segundo grau por uma caótica e desordenada profusão de áudios sem que o juiz de primeiro grau cumpra o elementar dever do instrutor na ordenação e hierarquização dos pontos que julgou relevantes para a formação de sua convicção decisória", comentou ele sobre a falta do registro escrito.

Divergência

A desembargadora Luciane Cardozo Barzotto discordou dos colegas da turma, mas ficou vencida. A magistrada destacou a validade de audiências somente gravadas: "Não se pode dizer que o juiz que optou por esta modalidade esteja praticando ato ilegal, máxime se não houver nenhuma resistência ou oposição das partes".

Segundo Barzotto, o método de apenas gravar depoimentos seria útil, especialmente no momento da instrução, já que tornaria a audiência mais ágil. Porém, seria mais demorado para as fases posteriores do processo.

A magistrada também observou que os vídeos disponibilizados no PJe Mídias se referem apenas aos depoimentos das testemunhas, enquanto as demais informações teriam sido registradas em ata. Segundo ela, os vídeos em questão seriam "vívidos e compreensíveis".

Assim, a desembargadora não constatou afronta ao contraditório e à ampla defesa, nem ilicitude na produção de prova ou mesmo prejuízo das partes, já que ninguém se insurgiu contra o procedimento. Portanto, não haveria nulidade da sentença ou da falta de transcrição dos depoimentos.

Clique aqui para ler o acórdão
0020457-53.2019.5.04.0001

Fonte: ConJur, 10/08/2021.
{

Advogados

Tratamento de Dados Pessoais (Data Protection Officer - DPO)

E-mail: lgpd@lippert.com.br